Um dia vou me deixar.
Aproveito para lamentar antes, pois, sabe como é, não sei se serei testemunha da minha ida.
Do meu deixamento.
Vou deixar você.
Vou deixar amigos.
Vou deixar que me esqueçam ou que se lembrem de mim.
Vou deixar por ausência.
Vou deixar que lembrem de meus defeitos com carinho e dos erros com perdão.
Como se eu tivesse que deixar...
Vou deixar de ser um corpo, um meio de transporte para a minha subjetividade.
Quando eu me for, meu meio de transporte preferido será a memória alheia.
De sujeito a memória, hum ... não sei se terei tamanha durabilidade.
Você não me verá perambulando por céus celestiais.
Não venha tentar me encontrar.
Espero não deixar dívidas.
Se fosse antigamente, tentaria deixar um saco de moedas de ouro.
Mas hoje prefiro uns livros, umas canções, uns exemplos e umas ideias.
Deixo-os, mas não sei se os encontrarão.
Tudo que você achar é seu. Já lhe aviso, vão disputar as moedas.
Se você achar lembranças, são suas, divida-as se quiser.
Também deixarei segredos. Espero que acompanhem sorrisos.
Falando em segredos, estes estarão a salvo de mim e serão, exclusivamente, daqueles
com quem os compartilhei.
Deixarão de ser segredos.
O segredo de um só pode até não ser mais realidade.
Guarde os nossos segredos com carinho. Sei que o fará.
Quando eu me for, vou deixar tudo. Até a lembrança, mas esta demora mais a partir.
Só não vou deixar de ter sido...
Minto.
Com o tempo, deixamos todos de ser alguém e nos prendemos em
quadradinhos numa árvore genealógica. Em três gerações, deixamos de “ser”.
E repare que nascemos no quadradinho e não paramos de olhar para
os galhos de cima e de baixo. Mas os galhos são tão curtos...
Não sou muito afeito a ficar preso num quadradinho, numa árvore.
Se eu conseguir abandoná-la com o deixamento, bom para todos, ou muitos,
ou alguns,
Acho eu.
Deixo beijos. Sorrisos. Desejos. Desilusões. Detalhes.
Alguns não aparecem no quadradinho. Outros, nem na lembrança... de outros.
Outros só apareceram num minuto... mas foram.
A existência faz com que, simplesmente: sim!
Por via das dúvidas, ainda vou... sendo, gerundicamente. O que der para ser.
Pelo menos enquanto eu estiver aqui, não caibo no quadradinho.
Poesia interpretada por Tonico Pereira:
Poesia interpretada por Tiago Lacerda: